É surpreendente como o artista, que fez tantos murais extraordinários, obras que exigiram estudos, planejamento, vagar, auxiliares, ateliês espaçosos, tenha tamanho carinho pelo universo cotidiano que o cerca ou o viu crescer. Animais, paisagens, parentes, objetos domésticos, meninos da sua infância, espantalhos, enterros, brincadeiras infantis. E sempre, em cada um desses encontros ou recordações, Portinari parece perceber o ser oculto na superfície vulgar, alguma coisa que o dignifica e o torna único. Não a aparência, mas a alma que se esconde aquém ou além da banalidade superficial. Essa descrição é a da arte e não a de um pretenso realismo, do entendimento convencional. Fragmentos memorialísticos da beleza pressentida.
Candido Portinari é um paradigma. Ele nos traz o sonho do que o nosso país pode vir a ser. É um artista mergulhado na nossa humanidade, no ser brasileiro, e, ao mesmo tempo, é um monumento psíquico, um marco da nossa consciência, um ser que se doou, um escravo do talento, um milagreiro que construiu uma linguagem que parece impossível de ser criada por um ser fisicamente frágil, morto precocemente. Ele nos diz, a sua obra nos ensina, que tudo é possível, desde que você tenha um norte e abdique da frivolidade. Ao se doar, ao se pôr à disposição do talento, Portinari não se esvazia, mas se torna um filho da aventura, um homem e seu percurso e o seu diálogo com a história.
Além disso, a qualidade estética de Portinari, a grandeza de seus temas, a ousadia de interpretação e a coragem de escolha de assuntos, com dificuldades infinitas, o caracterizam como um dos grandes artistas do século 20. E na sua obra encontramos a imobilidade da tragédia, o tempo paradigmático do símbolo e a ausência da agitação do simples drama. Portinari é a tessitura que organiza e forma a base da arte brasileira, a marca da nossa maturidade, o ponto alfa, do qual podemos contemplar o nosso panorama.
Esse título, com pequena modificação, foi retirado do poema que Portinari datou em 1.11.1961, pouco antes de sua morte, três meses depois, em 6.2.1962. Esse poema é extraordinário, talvez o melhor que Portinari escreveu. Portinari narra a sua frustração em não ter conseguido ver o “Cristo”, de Grünewald, em Colmar, França. O museu estava fechando e ele contemplou o Cristo por uma porta entreaberta. Conta de seu amor ao artista, descreve que estava morrendo e que seria, portanto, uma despedida. E ao contar da sua contemplação, do seu diálogo com o artista e a obra entrevista, ele descreve a sua própria percepção, o seu indomável espírito diante das dificuldades. Ao se despedir da obra-símbolo, ele, na verdade, revela o seu modo de apreensão do mundo. Ele nos diz, sem ter essa pretensão explícita, como o artista Portinari se relaciona com o mundo; o ser e a luz do mundo. E ele nos diz que de um buraco de luz observa a obra magna do artista e como a vê, numa asa do sol, como a percebe luminosa. Esse título é um retrato do Portinari secreto.
Candido Portinari nasceu em 29 de dezembro de 1903. Faz 120 anos e nos parece uma data especial. E esta mostra é motivada por esse momento. Quando contemplamos o percurso de sua obra, nos admiramos de como ela foi aceita, negada, reconhecida e de como, cada vez, a sua importância estética, histórica, cresce e se nos oferece como exemplar de uma época e de seu futuro. Esta exposição é uma oportunidade de novamente pensar em Candido Portinari, na grandeza da arte e na sua capacidade de nos tornar mais humanos, de conformar o nosso psiquismo. E refletir no mistério da cultura e da sua capacidade de nos confrontar com o prazer da forma, nos impregnar da sublimidade do conceito, nos elevar e alargar a nossa imaginação.
Até 06 de Mai de 2023
Galeria Frente
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